A obsolescência do arquétipo do comprador público fordista, stricto sensu.
Este aqui não é um texto elegante e imaculado, peço desculpas desde já. Viso, aqui, a uma aura de transgressão, de fuga ao mainstream que insiste em nos iludir, como se verdade fosse.
Qual a melhor forma de combinar os recursos de uma organização, de forma a maximizar as chances de sucesso? Ou, de forma mais direta: como administrar?
A pergunta acima aflige a humanidade, com maior rigor técnico, desde o final do século XIX, quando a produção foi catapultada pelo advento da Revolução Industrial. Desde então, inúmeros foram os esforços para bem predizer o comportamento das empresas / organizações, concebendo-se modelos de abordagens específicas, abstrações da realidade per si. De relevância seminal, já no início do século XX, testemunhou-se a gênese da chamada Administração Científica, cujos maiores expoentes foram os engenheiros mecânicos estadunidenses Frederick Taylor e Henry Ford, e que se detinha na otimização das tarefas – eis a variável principal considerada.
Ao longo do século passado, pois, tomaram corpo diversas teorias organizacionais, cada qual centrando-se em distintas variáveis de interesse: tarefas, estrutura, pessoas, resultados, ambiente, tecnologia, redes, disputa por recursos escassos, cultura, poder. De todas elas, duas se fazem presentes e dominantes no ideário e na práxis da administração pública brasileira: a burocracia weberiana – por vezes eivada de cediça disfuncionalidade – e a própria concepção taylorista-fordista. Ambas comungam do objetivo de ganho da eficiência, advindo da especialização e da decomposição do trabalho. De realce, o fordismo é tido, ao menos por parcela da literatura da área, como um liame entre a organização científica do trabalho e a racionalidade instrumental burocrática. Em ótica operacional, alude, conforme Tenório (1994, p. 88)[1], ao “gerenciamento tecnoburocrático de uma mão de obra especializada sob técnicas repetitivas de produção de serviços ou de produtos padronizados”.
Um primeiro ponto a ser tocado na presente argumentação, menos alegórico do que deveria ser, é o da direta analogia entre o processo de contratações públicas levado a cabo, ordinariamente, no País, e uma esteira de produção fordista. Ainda que, grosso modo, qualquer processo goze de possível adequação aos preceitos do fordismo, o nível geral de padronização e de massificação das decisões no rito de compras governamentais são dignos dos desígnios do fundador da Ford Motor Company.
Eis aqui a padronização manifesta. Com algum nível de generalização, um dos principais objetivos específicos de quem labuta no rito de contratações é chegar a uma satisfatória minuta de edital de pregão. Tal é o intento subjacente, antes mesmo de se ingressar na confecção de um estudo técnico preliminar (ETP). Antes mesmo de se bem delinear o objeto. Aliás, estudos preliminares, pesquisas de preços e termos de referência são costumeiramente tidos como peças necessárias a se chegar ao citado edital. São ônus mandatórios, barreiras a serem vencidas. As decisões já estão tomadas, rotineiramente, muito antes da primeira página de um ETP, eis o viciado estereótipo. A esteira de produção funciona em lógica sempre cartesiana: ingressa uma necessidade, sai um edital de pregão. Todas as tarefas são eminentemente artesanais. O trabalho é, quando possível, segmentado ao longo da esteira, com a perda inexorável de visão sistêmica. Alienação do trabalho, condições sisíficas[1] e perda de significado são sintomas presentes, em nível sociopsicológico. Um quê de Tempos Modernos, do sempre brilhante Charles Chaplin.
Tal arquétipo é, em si, corolário da hipertrofia histórica do Brasil, seja em expertise, seja em investimentos em sistemas de TIC, no pregão, e, mais ainda, na etapa de seleção do fornecedor, em detrimento de outras opções logísticas, bem como das etapas de planejamento e gestão contratual. No caso, a hipertrofia criou raízes culturais, em aplicação retilínea da Teoria Institucional. Hoje, sabemos, por exemplo, discutir os meandros dos prazos subjacentes a uma dinâmica competitiva em sede de pregão. Mas titubeamos em responder quem elabora e aprova um estudo preliminar, ou vemos com insegurança a quarteirização na fiscalização das avenças, em face de ser terreno pouco explorado.
O “gestor de compras públicas” hoje, no País, é, com honrosas exceções, um gestor de pregões realizados por seu próprio órgão ou entidade (ou de caronas em SRP), sem olvidar as dispensas de licitação e as eventuais inexigibilidades, claro. Fugir desse padrão é ingressar em zona de risco, em linha de pouca prudência, diz o cognominado “direito administrativo do medo”.
Indicadores de desempenho próprios aos setores de compras governamentais aludem, como regra, ao número de contratações realizadas. Número de pregões, de dispensas, de inexigibilidades por ano. Tocam, ainda, uma potencial economia das compras, cotejando-se, em prática autocentrada, o valor estimado com o contratado. A efetividade é construto rarefeito nessa senda, reconhece-se. Para quem considera sustentabilidade e efetividade conceitos distintos, em qualquer nível de análise, consigna-se: o desenvolvimento sustentável também se faz rarefeito (e incompreendido) como medida de performance.
As citadas raízes culturais, inevitável e inadvertidamente, cresceram e tocaram o modelo de gestão por competências, muito embora, por vezes, tacitamente. O estereótipo do “bom gestor de compras” deve, obviamente, operar sua esteira de produção com celeridade, em obediência à ode de tempos e movimentos taylorista. Deve “matar no peito” uma série de comandos próprios à governança top-down, mesmo que não haja a devida recepção mediante uma escassa governança bottom up.
Talvez estejamos exaurindo esse modelo, ao mesmo tempo em que se faz necessário, em sua substituição, o surgimento do “bom gestor de necessidades”, ou, quiçá linguisticamente mais acertado, o “bom gestor logístico”. A contratação pelo órgão ou entidade, nessa ótica, é apenas uma das hipóteses de atendimento de determinada demanda. Um rol de possibilidades, sem a menor pretensão de ser exaustivo, é assim apresentado:
Um “gestor de logística”, nesse novo normal, deve dar um passo atrás, para ver o todo. Não basta a concepção de modelos inovadores de contratação, com espeque em economia compartilhada, em monetização. Por vezes, deve adotar estratégias simultâneas, a fim de maximizar suas chances de êxito. Nada obsta, por exemplo, que faça um chamamento público de doação, ao mesmo tempo em que instrui a fase interna de uma licitação. Se a doação lograr êxito, cessa-se o certame. Ou que negocie encargos acessórios em doação, ao passo que analisa possibilidades de trocas de ativos. Sob essa lógica, as necessidades inscritas em um plano anual de contratações poderiam, ao menos parcialmente, ser atendidas mediante outras formas que não… contratações.
Nessa sistemática, discernir a assimetria de conhecimento da Administração Pública com relação ao mercado é condição sine qua non, de cunho principiológico. Na tarefa de suprir, o diálogo com o segundo setor, na fase de planejamento, deve ser ampliado. Audiências públicas, consultas públicas de estudos preliminares e de termos de referência, ilustra-se, são práticas a serem cultivadas. Uma dilatação do PMI, a instituição do diálogo competitivo, e um vindouro novo marco legal das startups rumam, igualmente, nessa direção.
Mister assinalar que estamos diante de uma Nova Lei de Licitações, que nos oferece caminhos que desafiam a esteira de produção fordista de editais de pregão. Aliás, o pregão passa a ser um dos subtipos da concorrência. Se primássemos pela melhor didática, essa mesma concorrência absorveria o pregão, que, por sua vez, perderia a razão de gozar de terminologia própria. Objetivamente: a concorrência, do tipo menor preço ou maior desconto, no modo aberto ou aberto e fechado, é o pregão. Pronto.
A releitura do modelo atual é bem-vinda. Sem embargo, será morosa e, muito provavelmente, não se sucederá em curto prazo, pois contraria todo um compliance erigido com significativo custo de transação. Significa ingressar em arena de conflito, seguindo-se todo um script muito bem delineado pela ciência política. Desinstitucionalizar, afinal, é algo muito pouco tratado até mesmo pela própria Teoria Institucional.
[1] TENÓRIO, F. G. A flexibilização da produção significa a democratização do processo de produção? In: XVIII ENANPAD, Anais…. 1994.
[2] Relativas a Sísifo, mortal da mitologia grega, condenado, por toda a eternidade, a rolar uma imensa rocha até o alto de uma colina. Contudo, sempre que se aproximava do cume, a pedra ficava muito pesada e rolava de volta até o seu ponto de partida. O condenado, dessa forma, reiniciava sua jornada, repetidamente, por toda uma eternidade de esforços inúteis e de frustração.
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