Silvia Sfeir é Gente Que Brilha
Confira a entrevista com Silvia Sfeir, Mestre em Administração de Empresas que há 20 anos é professora e atualmente ocupa o cargo de Diretora Executiva de Vendas & Acesso na Bayer, gigante da...
Aviso desde já: esse texto não é para ser lido de forma açodada. Peço desculpas desde logo, por ele, talvez, não se amoldar às nossas rotinas diárias, sempre tão repleta de compromissos. Não, não é um texto que pode ser absorvido como quem bebe um copo d’água de uma só vez, em um único gole. É, digamos, um texto para ser degustado como quem toma um bom café, ou uma boa taça de vinho. Para mim, confesso, o café faz mais sentido.
Se é do tempo de sorver um copo d’água que você dispõe, caro(a) leitor(a), peço que não vá adiante. Há chances de não conseguir depreender o ferramental que a noção de realidade tem em nossas vidas. O quanto essa mesma realidade pode e é moldada politicamente, catalisada linguisticamente, nas múltiplas dimensões de nossas vidas. As redes sociais são a mais clara expressão disso, eis o insight.
Agora, se você dispõe de um tempo para apreciar uma boa xícara de café, siga adiante. Amplie sua visão. E perceba, mais claramente, as nuances da sua realidade.
Poucos conceitos habitam lugar tão central na Filosofia do que a realidade. Desde a filosofia clássica, ainda na Antiguidade – Tales, Platão, Aristóteles e por aí vai –, a discussão acerca da realidade – não raramente confundida e imbricada com a determinação dos contornos daquilo que se pode considerar verdade – tem morada cativa no pensamento humano.
Por óbvio, a preocupação com o construto é autoexplicável. A realidade, em última instância, é o substrato que rege nossas experiências de vida. É o meio sobre o qual deixamos pegadas, a microambiente que construímos ou, de sorte outra, que se avulta de forma determinística, ao menos às vezes.
Grosso modo, há dois modos mediante os quais a Filosofia trata a realidade.
Essa suposta dicotomia, usualmente, habita o domínio acadêmico, e, mais propriamente, as discussões teóricas, sendo muito raramente transposta em sede instrumental a campos práticos, na dinâmica organizacional. No entanto, caro(a) leitor(a), entre a ontologia realista e idealismo subjetivista,“há mais coisas do que pode sonhar nossa vã filosofia” – esta, aliás, uma sempre atualíssima conclusão, originalmente concebida por Hamlet a Horácio, na famosa peça de Shakespeare.
Como bem prenuncia o título desse sintético artigo, a abordagem recai sobre a realidade aposta pela Nova Lei de Licitações e Contratos, que já chega a seu quinto mês de existência.
Como um dos diplomas mais expressivos do direito público pátrio – regente do comportamento do maior comprador do País –, discutido no Congresso Nacional ao longo de quase uma década e repleto de tentativas de mudanças a práticas já arraigadas em logística governamental, fato é que a Lei nº 14.133/21 atrai atenções dos mais diversos segmentos sociais. Docentes, discentes, agentes públicos, mercado, terceiro setor, órgãos de controle, organizações internacionais. É uma lei que dá regras a gastos que, provavelmente, ultrapassam um décimo de nosso PIB, traço que, se tomado isoladamente, justifica os holofotes direcionados recém inaugurado regramento.
No início de abril, com a Lei publicada, o que era expectativa tornou-se realidade. Veio ao mundo uma norma concreta, definida. 194 artigos. 5 títulos, divididos em 32 capítulos. Um endereço web definido, acessível a todos que dispõem de Internet. Palavras apostas de forma concatenada, com elevado custo de transação para alteração. Um artefato ontologicamente realista, os mais apressados poderiam anunciar, comungado entre os mais diversos legislados. Uma vez mais recorrendo-se a Kant, estávamos diante de um objeto postulado, uma corporificação do númeno, passível de ser conhecido sem a ajuda dos sentidos.
De fato, o realismo ontológico, enquanto lente de se apropriar da nova Lei, durou pouquíssimo tempo. Nos primeiros dias de abril, as redes sociais foram inundadas de hipóteses interpretacionistas, legítimas enquanto expressão. A Nova Lei, em si, passou soar etérea, pouco concreta, enevoada. Sintoma natural, frise-se, em face de sua intentada internalização, ainda não concretizada. Cada live, uma construção – ou uma desconstrução, a depender da visão. O legislado ainda hoje se vê imerso em um mar de idealismo que não é seu, tal é a assertiva um pouco ácida.
De forma efêmera, estas linhas aproximam-se de águas mais turbulentas. A realidade não é só vista ou percebida: ela também é comunicada. E quem detém os meios de comunicar e de apor matizes a essa realidade goza de poder. Possível análise é a de que os discursos, nesses cinco meses, rumaram para outra disciplina filosófica: da ontologia para a predição (a tentativa de se delinear o futuro), ainda que com parcos instrumentos, com significativa assimetria de informação. A realidade, pois, pode ser ideológica, quiçá uma falha consciência sistematizada da conjuntura social, discursada de forma recorrente na tentativa de se imiscuir com o imaginário coletivo.
Li e vi diversos relatos, nos últimos meses, de que o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), uma das principais inovações preconizadas pela Nova Lei, não iria ser prontificado em até dois anos (prazo após o qual as legislações mais antigas, mas ainda vigentes, serão revogadas). Vi debates que afirmavam que a Lei teria aplicabilidade imediata, independentemente do PNCP, da legalidade estrita, ou da mais de meia centena de regramentos infralegais necessários, que teimam que nos rememorar do conceito de eficácia limitada. Discursos de que a Nova Lei não é formada por normas gerais, de que o agente de contratação não precisa ser servidor efetivo em municípios. O rol é extenso.
Em cinco meses, o grau de subjetivismo sobre a norma recém posta, em alguns poucos aspectos, foi minorado (e jamais será exaurido!). Pareceres de instâncias jurídicas bem como posicionamentos de órgãos centrais de governo apontavam para a sobredita eficácia limitada. No dia 9 de agosto, lançou-se o PNCP. Uma pitada de realismo em um Weltanschauun que jamais será substituído, mas sim atilado em acepções mais acuradas.
Não se olvida que o cunho hermenêutico e interpretativo é a espinha dorsal do bom direito. É o que garante a moldagem dos ditames aos casos concretos, e a melhor aderência normativa aos anseios sociais. Esse não é o ponto ora tocado. O que se toca, sim, é a edificação de uma realidade, sempre dinâmica, mas que parece rumar do mundo das ideias para um domínio de maior concretude. Minha percepção sobre o PNCP é única, fruto de minha cultura, de minhas experiências, de minha personalidade e, na concepção de Hofstede, até mesmo de minha carga genética. Jamais será perfeitamente idêntica à sua percepção, ou a de outrem. Mas, agora, há um ponto de partida mais tangível e único para que as inferências (singulares) sejam tomadas. Há menos névoa no entorno desse prédio.
O princípio da segurança jurídica, na singela perspectiva deste artigo, tem o condão de suavizar as distorções e imperfeições das “realidades”. Afinal, se cada um enunciar e depreender uma realidade a partir da Lei de Licitações, haja incerteza ao ambiente negocial. A Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 30, é farol sempre aceso.
Ainda na expedita incursão sobre as disciplinas filosóficas, o anseio do legislado é menos o de ontologia e o de predição, e mais o de praxiologia (a teoria das ações). Afinal, esse mesmo legislado não quer muito saber se o copo está meio vazio ou meio cheio…. ele sabe que, no final do dia, vai ter que lavar esse mesmo copo. Detergente, bucha e água, segurança jurídica, boa capacitação, governança instrumental. Essa é a realidade praxiológica a ser fomentada.
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