O mito de Sísifo e o rito de contratações públicas
21/07/2021
O mito de Sísifo e o rito de contratações públicas
Muito provavelmente este texto deva ser lido como uma continuação, em visão mais estratégica, de meu artigo anterior nesta nobre coluna. O mote remanesce a gestão por competências, o perfil almejado do profissional – in casu, do gestor de logística pública – e, mais especificamente, toco em algo que costumeiramente habita o que se alcunhou “literatura de aeroporto”: a motivação no trabalho.
Há de se reconhecer, no entanto, que as próximas linhas bem se adequam a qualquer profissão, haja vista a discussão centrar-se em algo mais profundo, imanente à nossa própria natureza como seres humanos.
Dessignificado. Nada mais simbólico do que começar este artigo com um neologismo, uma espécie de inovação linguística para algo que, talvez, não devesse nem existir – mas que, ainda assim, subsiste com frequência nefasta. E é esse mesmo dessignificado no ambiente de trabalho que será, aqui, revirado em suas entranhas.
Logicamente, subjetiva que é a recém-criada expressão, sinto-me obrigado a tecer recorte mais preciso. Falo, aqui, de um sentimento de frustração provocado pelo descolamento entre a tarefa profissional imposta e os mecanismos de automotivação do indivíduo, podendo ter origens diversas. Um tipo de prisão, ainda que sem contornos temporais e físicos bem definidos. Mas, inegavelmente, uma indubitável clausura, que demanda atributos pouco claros (e pouco usuais) para a sua superação.
Falar de dessignificado no trabalho – de forma direta, sem maquiagens ou rodeios – é um primeiro passo para revelarmos um monstro que costumamos varrer para debaixo do tapete. O destaque a ser dado a essa abordagem é corolário direto da própria centralidade do trabalho em nossas vidas. “Definidor da estrutura do tempo, divisor entre as atividades pessoais e impessoais e legitimador das fases da vida” (ALBERTON; PICCININI, 2009, p. 2[1]). Se desprovido de significado, faz germinar mazelas nos níveis organizacional e individual – uma espécie de “mal do século”, de Chateaubriand[2].
[1] ALBERTON, D. M.; PICCININI, V. C. O Sentido do Trabalho em Agências de Publicidade. In: XXXIII EnANPAD, 33, São Paulo. Anais… São Paulo, 2009.
[2] Expressão cunhada pelo escritor e diplomata François-René Chateaubriand, um dos expoentes literários do romantismo. “Mal do século” refere-se ao sentimento de desilusão, tédio, melancolia e inutilidade existencial, decorrente de uma crise de valores na Europa do século XIX.
Ingressemos, assim, em ligeiro itinerário sobre o dessignificado e a mitologia grega
O mito de Sísifo
Ainda que de forma preambular, permita-me, caro(a) leitor(a), brevíssimo aparte sobre o valor dos mitos, seja enquanto elemento cultural, seja, como é o caso, enquanto alegoria e fonte simbólica para estudos da natureza humana, algo muito presente na psicologia junguiana. A mitologia grega – na qual se insere a narrativa que se seguirá, se atualmente pouco relevante é na organização diária da sociedade, permanece rica em seu papel de alegoria, com ambivalente estrutura composta por um sentido explícito e outro, logicamente tácito, oculto. Eis a razão pela qual resgato Sísifo, personagem de distintas camadas, capazes de bem guiar nossa incursão na polarização entre significado e dessignificado (ou absurdo, como diz a obra de Albert Camus).
Dentre os mortais na mitologia grega, há os que são talhados por sua coragem. Perseu, Ajax, Atlanta, Teseu, Heitor, Orfeu, entre muitos outros. Há mortais que se distinguem por sua engenhosidade. Dédalo e Ícaro, certamente, compõem esse rol. E, ainda que em menor número, há mortais que sofreram punições dos deuses, seja por sua afronta direta, seja por sua ousadia, pela profanidade, ou pelo desrespeito às vontades tão voluptuosas das próprias divindades do Olimpo. Tântalo, Íxion (talvez o mais ousado de todos, por cantar a própria esposa de Zeus), Prometeu, Quelone, Sísifo. Este, o mais perspicaz e dissimulado de todos.
Sísifo, apesar de mortal, tem ascendência divina, sendo filho de Éolo, rei do vento[3]. Foi fundador e rei de Éfira, posteriormente denominada Corinto, uma das mais promissoras cidades da antiguidade clássica. Tido em algumas versões de sua história como um sátiro e um tirano, atraía para seu reino convidados e viajantes, para depois matá-los, violando a tradição da xenia, a lei da hospitalidade firmada por Zeus. Mas é a astúcia sua característica mais marcante, recorrentemente associada à sua arrogância, bem como à sua capacidade de irritar os deuses.
O destino de Sísifo começa a ser selado como decorrência de haver testemunhado o rapto de Egina, a belíssima filha do deus-rio Asopo, por Zeus, bem como por saber o seu paradeiro. Ciente do enorme valor dessa informação, barganha-a com um irresignado Asopo, em troca de um abundante manancial para Éfira[4]. A ira de Zeus vem a galope: ordena que Thanatos[5], o deus da morte, arrebate seu espírito, e o leve ao mundo inferior. Sísifo é levado ao reino onde os titãs estão encarcerados, e, vendo-se prestes a ser acorrentado, pergunta sagazmente como as algemas funcionam, com disfarçada curiosidade. Acaba, assim, por ludibriar a própria morte, prendendo Thanatos em suas próprias algemas, situação na qual este permaneceu por tempo considerável.
Nesse interregno, ninguém na Terra morria, ante a ausência de quem coletasse as almas humanas. O resultado foi a irritação dos deuses, já que não mais se ofereciam sacrifícios ou presentes para a cura dos doentes ou dos feridos. Entre os deuses, um dos mais furiosos era Ares, o deus da guerra, que via até mesmo os decapitados em campo de batalha permanecerem vivos. Não havia, nessa condição, qualquer consumação de resultados de guerras. Ares liberta Thanatos, com a missão de levar Sísifo ao mundo inferior, governado por Hades, irmão de Zeus.
No entanto, o mais astuto dos mortais, antecipando-se e já conhecedor de seu destino, pede uma última prova de amor à sua esposa Mérope[6]: que a ele não fossem prestadas as devidas honras fúnebres, realizados quaisquer sacrifícios a Hades ou colocada uma moeda sob sua língua como forma de pagar Caronte, o barqueiro que carregava as almas do recém-mortos sobre as águas dos rios Estige e Aqueronte. Ao invés, que tivesse seu corpo nu simplesmente abandonado em praça pública. E assim foi feito.
Chegando ao mundo inferior, Sísifo argumenta com Perséfone, esposa de Hades, que não tinha o direito de lá estar. Não tendo pago Caronte, deveria ter sido abandonado na margem do rio Estige. Ademais, a negligência de Mérope seria um mau exemplo a outras viúvas, ponderou. Convence, assim, Perséfone a conferir permissão para seu regresso ao mundo dos vivos por três dias, tempo suficiente para preparar o seu funeral e para punir sua esposa.
Por óbvio, era apenas um estratagema: Sísifo não cumpre sua promessa, e somente retorna a Hades após muitos anos quando já em idade avançada, tendo sido necessário Perséfone enviar Hermes, filho de Zeus, ao seu encalço para levá-lo de volta à força. Lá chegando, recebe duro castigo pelas faltas cometidas.
Uma singela interpelação, se me permite. A versão de Homero acerca do mito de Sísifo é bem mais romântica, por assim dizer. Sísifo é retratado não como embusteiro e maquiavélico, mas sim como sábio e prudente. O auxílio a Asopo, sob essa lente, deu-se no sentido de meramente ajudar um pai a encontrar sua filha. A fonte dada pelo deus-rio foi um presente, em retribuição. O pedido a Mérope não era uma estratégia para engodar Hades, mas sim um teste para que soubesse o quanto sua esposa, de fato, o amava. E, por fim, Sísifo opta por permanecer no mundo mortal pelo imenso amor que nutria pela plêiade. A ira dos deuses, interpreta Homero, não era resultado do ardil, mas sim do excesso de paixão que o fazia resistir à ordem de Zeus. Um roteiro mais hollywoodiano, certamente.
Sem embargo, diz a corrente mais comum que, em sua vida, Sísifo violara as leis divinas da hospitalidade, atraindo e assassinando viajantes. Ludibriara a morte por duas vezes, sendo que, em uma delas, fez imortais todos os seres humanos. Enganara a rainha do submundo, escapando e desfrutando todo o resto de sua vida em plenitude. Por tudo, o rei de Éfira era convencido de que era mais esperto do que os deuses. Coube a ele uma das sentenças mais desconsoladoras do legendário grego.
A Sísifo, é reservado o frio e úmido poço do Tártaro[7], um local de enorme profundidade, e, segundo Hesíodo, coberto por três camadas de noites – pense numa escuridão! É condenado a uma simples tarefa: rolar uma imensa rocha até o alto de uma colina. Contudo, sempre que se aproximava do cume, a pedra ficava muito pesada e rolava de volta até o seu ponto de partida. O condenado, dessa forma, reiniciava sua jornada, repetidamente, por toda uma eternidade de esforços inúteis e de frustração.
O trabalho sem esperança, despojado de criatividade e de qualquer senso de progresso, consolida-se como uma das piores sentenças da mitologia clássica.
[3] A Sísifo é creditada a paternidade do herói Ulisses – o grande protagonista do poema homérico Odisseia, tendo-se valido de ardil para seduzir Anticléia, na véspera de seu casamento com Laerte, como uma das formas de se vingar do ladrão Autólico, pai da moça.
[4] Trata-se da fonte Pirene.
[5] Em algumas versões, essa tarefa foi dada a Hades, irmão de Zeus e o deus do mundo inferior.
[6] Essa é para quem gosta de mitologia: Mérope é uma das sete plêiades, filha de Atlas e Pleione, e a única das irmãs a se casar com um mortal. As plêiades são imortalizadas, em diversas culturas, como um agrupamento de estrelas da constelação de Touro.
[7] Do mesmo modo que Urano é o deus que personifica o céu e Gaia, a Terra, Tártaro é a personificação da prisão subterrânea do mundo inferior.
Condições sisíficas e o processo de contratações públicas
Ainda quem em sede de suposto estereótipo, entende-se possível trazer inferências gerais sobre a noção de dessignificado e alienação no trabalho no rito de logística pública.
Ao longo dos anos, como fruto natural do rito de institucionalização, as competências imanentes do processo de contratações públicas acentuaram-se em suas nuances mecanicistas, mormente do lado de quem instrui o processo, qual seja, o agente público.
A alegoria é a do script de Tempos Modernos, ultracitado filme estrelado por Charles Chaplin. Licitação, no Brasil, não raramente pode ser vista como uma esteira de produção fordista, na qual um dos principais produtos intermediários é um edital de pregão. Aliás, antes mesmo de se analisar o pleito, muitas vezes sabe-se que o intento, na fase interna, é produzir esse edital. Todo o resto é menos importante, são meros obstáculos a esse fim.
Tudo entre o registro da demanda e a publicação do instrumento convocatório são etapas a serem vencidas, tal é a ótica desvirtuada. Uma corrida de 100 metros com barreiras (ok… às vezes, 400 metros). São parafusos a serem apertados, peças a serem encaixadas, marteladas a serem dadas. Há quem, ilustra-se, reste indignado(a) por se ver obrigado a fazer um estudo preliminar – uma inovação em diversos órgãos e entidades do País – como se o artefato consubstanciasse mais uma barreira ao fim almejado: o edital de pregão.
E assim consolida-se a dinâmica, inexoravelmente. Protagoniza-se aquilo que se denomina “condição sisífica”, com menor significado, usualmente marcada pela falta de visão sistêmica. A pecha é o do burocratismo como fim autocentrado. O diálogo com o mercado, na fase preparatória, acaba menoscabado, nesse paradigma. O potencial de inovação, também. Os caminhos escolhidos são os de “conformidade com aquilo que sempre foi” e “aversão ao risco”, afinal, há sempre um excesso de trabalho sobre as equipes cada vez mais escassas, sobrando menos tempo para algo que nos faria escapar do arquétipo de Sísifo: repensar o trabalho.
Mas, não se iluda. Repensar o trabalho será uma necessidade imposta, em face das mudanças em nosso arcabouço legal e, especialmente, em face dos avanços tecnológicos. Um grande mercado virtual de contratações será erigido nas próximas semanas – o Portal Nacional de Contratações Públicas. Em menos de um ano, os fornecedores estarão enviando suas propostas, em dispensas eletrônicas, via celular. Os catálogos de materiais e de serviços em plataformas públicas de compras serão muito otimizados. A abertura de nossos certames a empresas estrangeiras será cada vez mais real.
Repensar o trabalho
Como se comportaria Sísifo em um mundo de recursos escassos? Em um mundo competitivo? Em um mundo no qual o beneficiário da pedra que carrega não fosse ele mesmo, mas sim a coletividade, tão carente de políticas públicas de qualidade?
Talvez – e essa é uma dura conclusão, mais rara em um mundo de arestas arredondadas – a alienação e o dessignificado de Sísifo não se adequem aos anseios do cidadão. Ao invés de “dessignificado”, o mote a ser perseguido é o da desalienação do trabalho, ciente de suas benesses na satisfação individual e no comportamento organizacional.
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