A foto ou o vídeo?
Acostumamo-nos, no Brasil, a analisar as conjunturas com olhares estanques, detidos em determinada micro fração temporal. O passado reside em morada já esquecida, ou, quiçá, menos relevante, enevoada por um fluxo informacional que privilegia o atual, poderia declarar um senso vigente. O futuro, bem, habita o domínio da incerteza, sempre tocante ao subjetivismo da predição, do presságio. Com tais axiomas, reluz em uníssono a foto do hoje, mas jamais o vídeo de nossas dinâmicas, as evoluções e involuções. Investiguemos as minúcias, pois, do quadro, da pintura, com o cuidado de não os mover por demasiado, sob o risco de perdermos uma estaticidade tão benéfica à dissecção.
Pequena pausa aqui é desejável, caro(a) leitor(a). Antecipo, em anticlímax, que mudaremos nossa rota, desde logo.
Antes que tais palavras iniciais criem raízes neste texto, ouso assentar que há pouco de axiomático no colocado acima. Já me escusando pela possivelmente desnecessária erudição, o que há é um paralogismo tácito, algo bem mais brando do que um sofisma, em face de seu caráter não intencional. E, uma vez tácito, alude a uma subconsciência a ser remetida à racionalização psicológica: é mais fácil tirar a foto, do que conseguir enxergar o vídeo.
Eis que nas próximas linhas ouso me afastar da foto, para me debruçar em um vídeo, ainda que em slow motion, sobre a transformação digital nas contratações públicas brasileiras.
Há aproximadamente 1.000 dias (isso mesmo, um pouco mais de 140 semanas, ou 32 meses) a Ação Integrada da Rede de Controle e Combate à Corrupção de Minas Gerais (ARCCO – MG) publicou diagnóstico[1] daquele Estado, revelando que apenas 28 municípios de 853 se valiam, à época, da adoção preferencial do pregão eletrônico. Ou seja, 97% de Minas Gerais, até setembro de 2019, era adepta das transações presenciais (ou “analógicas”, por que não?) com o Poder Público. E exatamente no dia 11 de novembro de 2019 (há cerca de 900 dias!), escrevi um sucinto artigo[2], que trazia a seguinte análise:
“Com honrosas exceções, o percentual medido pela Arcco é reproduzido por lugares outros, muito embora inexistam dados precisos. Rio de Janeiro. Bahia. Com 5.568 cidades, cabe a assertiva de que o Brasil é, hoje, um país municipal – e, como tal, vivencia a realidade do modo analógico de se fazer compras públicas. Brevíssimo aparte: não se propugna, aqui, que o rito eletrônico é, per si, o remédio para todas as mazelas das licitações. Não é. O que se assenta é que a forma presencial impinge corolários ditos pouco republicanos. Vem acompanhada de sequelas ora sintetizadas no corpus de fragilização da transparência, das possibilidades de controle social, do potencial de competitividade e das iniciativas de centralização de contratações”.
Pois bem…. 1.000 dias depois, cá estamos. Uma pandemia nos separa daquele passado que parece tão longínquo. O então “novo” Decreto do Pregão já não é tão novo assim. Uma Lei Geral de Licitações surgiu nesse ínterim, e estamos a um ano do fim de um período de transição durante o qual respira por aparelhos uma já desgastada Lei nº 8.666/93.
De um lado conjuntural, nesses 1.000 dias, o impacto da Covid-19 na realidade do trabalho foi preditor da transformação digital. O trabalho remoto foi institucionalizado, e os certames presenciais constituíam-se riscos de contágio. Tal contexto impulsionava o paradigma das contratações públicas eletrônicas, ou o e-procurement, eis o conceito global. De outro lado prático, de nada adiantaria a necessidade posta se a Administração Pública não oferecesse os meios para que o País pudesse, enfim, virar a chave de um jurássico mundo transacional analógico. E assim foi feito, em exitosa conjunção. Nesses lindes, os portais web de compras governamentais foram protagonistas, sobrelevando-se, pela sua capilaridade e market share, o Compras.gov.br.
Nesse vídeo de 1000 dias, erigiram-se regras de adesão a municípios ao Compras.gov.br, calendários a serem cumpridos, ações de comunicação diversas e dilatação do que era, em 2019, um sistema de TIC restrito à seleção do fornecedor. Se a narrativa de todas as ações capitaneadas extrapola as dimensões razoáveis para este artigo, a opção que remanesce é o cotejamento dos extremos temporais, em visão longitudinal. O indicador alumiado é o de municípios usuários do Compras.gov.br, segmentados por região geográfica[3].
Vamos, pois, de “antes vs. depois”:
REGIÃO | ANTES (final de 2019) | DEPOIS (maio de 2022) | VARIAÇÃO |
Centro-oeste | 97 | 296 | + 205 % |
Nordeste | 345 | 912 | + 164 % |
Norte | 116 | 358 | + 209 % |
Sudeste | 330 | 922 | + 179 % |
Sul | 299 | 738 | + 147 % |
TOTAL | 1.187 | 3.226 | + 172 % |
Na presente data, o Compras.gov.br alcança 57,94% dos municípios do Brasil (em 2019, era 21,3%). Se somarmos o compreendido pelos demais portais de compras públicas, governamentais ou privados, a conclusão é a de que sim, sedimentou-se o e-procurement no Brasil, em um vídeo de slow motion de 1.000 dias.
Volto, assim, a excerto do artigo escrito por mim em 2019, já gozando de uma espécie de satisfação ao reconhecer que o vídeo posto enseja inexorável releitura:
“Big data. Machine learning. Chatbots. Plataformas otimizadas de negociação com o mercado. Inteligência artificial. Blockchain. Sistemas de fiscalização contratual mediante inputs de controle social. Aplicativos para a participação em licitações públicas, disponíveis para operacionalização em celulares. Prestações de contas automatizadas. APIs de dados, possibilitando a interligação de serviços web, conectando sistemas que antes não se falavam.
[…]
Nessa ótica [de licitações presenciais], nossa inteligência em contratações públicas, degenerada por práticas já inexistentes em diversos países, é em si “artificial”, mas aqui com a conotação de “postiço”, de “pseudo”.
[…]
O comando insculpido no recente Decreto nº 10.024/19 exige que a contratação de bens e serviços comuns, pelos entes federativos, quando efetuadas mediante recursos de transferências voluntárias da União, seja dada mediante pregão eletrônico. O cronograma dessa exigência dá-se, justamente, pela IN nº 206/19, que espelha três ondas de ingresso dos munícipes nessa lógica, tendo por critério o número de habitantes: a última onda, para cidades com menos de 15 mil habitantes, será em junho de 2020. A medida alcança 95% dos municípios do País, beneficiários de convênios.
Por óbvio, a expectativa é que não haja uma simples mudança de chave automática quando do alcance das datas fixadas no aludido cronograma. Nem tudo soa tão cartesiano em solo pátrio, reconheçamos. Não obstante, a engrenagem começa a se mover. Entre 12 e 18 meses – eis um interregno plausível – o País ingressará, de forma dominante (e um pouco tardiamente), no modus operandi das contratações públicas eletrônicas. E vou além: o Comprasnet (4.0!) irá vivenciar crescimento exponencial, por franquear sua adesão aos demais entes federativos, sem ônus”.
A visão longitudinal do vídeo pode – e deve – se arrastar para o futuro. Doravante, a inteligência artificial terá sua denotação típica, e não mais “postiça”. E, se demoramos 1.000 dias para chegar até aqui, ingressaremos em ritos mais ágeis, acelerados e catalisados naturalmente pela curva ascendente das inovações de TIC.
Já nesse estágio atual, na última semana ingressamos em um marco histórico. O aplicativo do Compras.gov.br, em celulares, passou a aceitar propostas iniciais em dispensas eletrônicas. Foram cerca de 1.050 propostas cadastradas via app em 5 dias úteis. Ainda não há a ferramenta de lances via celular – a funcionalidade está prevista para entrar em produção em setembro. No entanto, há chances concretas de uma dessas propostas iniciais sagrar-se vencedora em uma dispensa. Teremos, assim, quem sabe nesta semana, a primeira contratação pública realizada via celular.
As implicações desse passo são abissais. Ingressaremos em um contexto inédito de competitividade em contratações. Em uma isonomia sem precedentes. Estamos falando na maior mitigação de barreira de entrada dos últimos anos. O que se transforma digitalmente não retrocede.
O futuro? Talvez nem tanto em slow motion, teremos parametrização de lances, geração automática de editais, participação ponta a ponta em licitações via app, novos modos de pagamento, um otimizado e completo Portal Nacional de Contratações Públicas. E, quem sabe, um dia (não muito distante), a Alexa, a Bixby ou a Siri poderão dar uma oferta em um pregão ou concorrência, programar o seu robô de lances, ou manifestar a intenção de recurso, bastando um comando de voz durante o intervalo de sua Smart TV?
Ver o vídeo demanda paciência. Acurácia. Criticidade. E olhar o passado é o melhor modo de se predizer o futuro.
[1] Disponível em: https://cge.mg.gov.br/phocadownload/arquivos_diversos/pdf/diagnostico%20da%20rede%20de%20controle%20-%20pregao%20eletronico.pdf.
[2] Disponível em: http://www.inclublicita.com.br/a-inteligencia-artificial-de-um-brasil-que-licita-no-modo-analogico/.
[3] Dados compilados a partir de https://www.gov.br/compras/pt-br/cidadao/painel-municipios.